Evento pago, cancelado em virtude da pandemia, não remarcado e não reembolsado. O que fazer?
Por Bernardo Herkenhoff Patricio –
Com o advento da pandemia de Covid-19, inúmeros eventos tiveram que ser cancelados em todo país, muitos deles cujos ingressos já haviam sido comercializados. Caso não houvesse sido proferida a Medida Provisória 948/2020, a relação entre a empresa organizadora do evento e o consumidor seria resolvida mediante o art. 20, II do Código de Defesa do Consumidor, que permite ao Consumidor exigir a restituição imediata da quantia paga.
Contudo, a Medida Provisória foi convertida na lei 14.046/2020, que recebeu alterações com a entrada em vigor da lei 14.186/2021, beneficiando, excepcionalmente, durante o estado de calamidade em virtude da pandemia, o prestador de serviços ou a sociedade empresária, ao retirar a obrigatoriedade de reembolsar os valores pagos pelo consumidor desde que assegurem a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados ou a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas. Muito fácil para qualquer empresa, certo?
Ao primeiro momento é nítido que houve uma preocupação com as dificuldades financeiras que as empresas do setor de turismo e de eventos iriam sofrer e, por consequência natural, as demissões que se seguiriam. Contudo, atualmente, já se passaram quase dois anos desde a publicação da medida provisória (que foi publicada em abril de 2020) e, até agora, há inúmeros eventos cujos consumidores não receberam o reembolso dos valores e nem mesmo há qualquer previsão de remarcação do evento.
O início do ano de 2022 foi marcado pelo fim do estado de calamidade previsto pelo decreto legislativo 6 de 2020. Com o fim do estado de calamidade, conforme art. 5º, II da lei 14.046/2020, os prestadores de serviços possuem o prazo de 18 meses para a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados.
Porém, caso o prestador de serviço não tenha condições de remarcar o evento ou disponibilizar o crédito para o consumidor, terá que restituir o consumidor dentro de um prazo de 12 meses. Neste ponto, cabe a empresa comprovar que terá condições de remarcar o evento ou, ainda, que haverá outros eventos para que possam ser consumido o crédito que será disponibilizado ao consumidor.
Mais importante ainda, não são todos os prestadores de serviços que podem negar a restituição dos valores ao consumidor pois a leitura do art. 8º da lei 14.046/2020 deixa muito claro que este benefício se aplica somente ao prestador de serviço ou à sociedade empresária que tiverem recursos a serem devolvidos por produtores culturais ou por artistas e isto também é um ônus probatório do fornecedor de serviços.
Não obstante, urge ainda ressaltar que não é toda e qualquer empresa ligada ao setor de eventos que pode se beneficiar da lei 14.046/2020. Assim foi o entendimento do magistrado da Vara do Juizado Especial Cível da comarca de Americana/SP (Processo nº 1003450-42.2021.8.26.0019) que considerou que a lei não se aplica ao serviço de Buffet contratado a parte para um evento.[1]
Evidentemente, a lei 14.046/2020 fere o princípio protecionista conferido pelo Código de Defesa do Consumidor, conforme muito bem apontado por AVELAR:
Entretanto, em leitura da referida Lei, depreende-se que não houve o devido respeito e observação dos princípios basilares dos direitos consumeristas, prevalecendo, em contrapartida, a proteção financeira das empresas privadas, o que afronta, por exemplo, o princípio da equivalência negocial, presente no artigo 6º, inciso II, do Código de Defesa do Consumidor.
Destarte disso, é cediço que o Código de Defesa do Consumidor não prevê a respeito de situações excepcionais, ou seja, não prevê sobre como proceder em situações de calamidade pública declarada pelo Estado ou sobre situações em que a sociedade for atingida por uma pandemia (doença epidêmica facilmente disseminada[1]). Todavia, o Código de Defesa do Consumidor manifesta a respeito da ausência de responsabilidade do fornecedor apenas nos artigos 12, § 3º e 14, § 3º, mas nada se confunde com a situação de calamidade pública ou da pandemia.
Ultrapassada a análise do Código de Defesa do Consumidor, vislumbra-se que o artigo 2º, caput e incisos I e II da Lei 14.046/2020 prevê que o consumidor não será ressarcido em caso de adiamento e ou cancelamento de shows, eventos, entre outros serviços, caso a empresa o forneça a possibilidade de remarcação ou, ainda, um crédito a ser utilizado no período de 12 (doze) meses contados da data de encerramento da calamidade pública, ou seja, a partir do dia 31 de dezembro de 2020, podendo ser prorrogado a situação, diante do cenário pandêmico.
Ou seja, pela simples leitura do artigo colacionado acima, vislumbra-se que não fora observado o princípio do protecionismo do consumidor ou da equivalência negocial, pois a própria Lei visa conservar e proteger a iniciativa privada, quando da restrição de responsabilidade sobre a devolução do dinheiro já pago nos eventos, shows e demais serviços, sem contar a inobservância do princípio da vulnerabilidade do consumidor, pois o mesmo agora estará sujeito à disponibilidade e decisão de remarcação dos eventos e shows, por exemplo, das empresas fornecedoras. [2] GRIFO NOSSO
No tocante aos entendimentos jurisprudências, há ainda uma forte tendencia em garantir ao fornecedor de serviço a opção de não restituir os valores pagos pelo consumidor, obviamente, desde que seja remarcado o evento ou haja um evento futuro para a disponibilização do crédito.
Há também a necessidade de observar cada caso concreto, que poderá ter particularidades que demonstrem que obviamente determinado consumidor não poderá usufruir de crédito futuro por algum motivo em particular, sobrando somente a opção de restituição. Nessa hipótese, há julgados que entendem que aplica-se o art. 2º, §6º da Lei 14.046/2020.[3]
Há ainda um julgado interessante do Tribunal de Justiça de São Paulo que acolheu o pedido de reembolso feito pela consumidoras, mas que o reembolso poderia ocorrer até o fim do prazo previsto na lei, ou seja, 31.12.2022. Vejamos:
JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS – RECURSO INOMINADO – RELAÇÃO DE CONSUMO – PEDIDO DE REEMBOLSO DE VALOR DE INGRESSO ADQUIRIDO PARA SHOW DE ARTISTA INTERNACIONAL – EVENTO CANCELADO SEM QUALQUER PRESPECTIVA DE REMARCAÇÃO EM RAZÃO DA PANDEMIA COVID-19 – ORGANIZADORA DO EVENTO QUE SE NEGA A REEMBOLSAR O VALOR PAGO PELO INGRESSO, DISPONIBILIZANDO À CONSUMIDORA APENAS A OPÇÃO DE CRÉDITO PARA SER UTILIZADO EM OUTROS EVENTOS ORGANIZADOS PELA MESMA EMPRESA – ABUSIVIDADE – INTERPRETAÇÃO DO ART. 2.º, § 6.º, DA LEI N.º 14.046/2020 QUE NÃO PODE SER FEITA DE FORMA LITERAL, SOB PENA DE SE PERPETRAR ABUSIVIDADES – CONSUMIDORA QUE NÃO PODE SER COMPELIDA A ACEITAR CRÉDITOS PARA PARTICIPAÇÃO EM OUTROS EVENTOS QUE SEQUER SE SABE SE SERÃO DE SEU INTERESSE – REEMBOLSO, CONTUDO, QUE NÃO DEVE SER REALIZADO DE FORMA IMEDIATA – REEMBOLSO QUE DEVERÁ SER OCORRER ATÉ O DIA 31.12.2022, POR FORÇA DO ART. 2.º, § 6.º, DA LEI N.º 14.046/2020 – MEDIDA QUE VISA RESGUARDAR A SAÚDE FINANCEIRA DAS EMPRESAS DURANTE O NOTÓRIO PERÍODO DE CRISE – SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA, OBSERVANDO-SE A DETERMINAÇÃO QUANTO AO PRAZO DE EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO – RECURSO DESPROVIDO. (TJ-SP – RI: 10060568520218260005 SP 1006056-85.2021.8.26.0005, Relator: Ana Luiza Queiroz do Prado, Data de Julgamento: 13/08/2021, 4ª Turma Recursal Cível e Criminal, Data de Publicação: 13/08/2021)
Portanto, para concluir, claramente a lei 14.046/2020 mudou o panorama entre consumidor e fornecedor de serviços, claramente beneficiando uma parte em detrimento a outra, em prol de interesses econômicos.
Contudo, a lei 14.046/2020 não é uma carta de alforria para as empresas reterem o dinheiro dos consumidores, pois afinal, a lei impôs requisitos as empresas para desobrigá-las de promoverem a restituição e estes requisitos, já expostos neste artigo, devem ser comprovados em juízo. Do contrário, é possível sim que o consumidor faça valer seu direito ao reembolso.
[1] PIECHOTTKA, Thais. Buffet é condenado a restituir valores correspondentes a festa não realizada durante a pandemia. Disponível em: https://thaispiechottka.jusbrasil.com.br/artigos/1300327182/buffet-e-condenado-a-restituir-valores-correspondentes-a-festa-nao-realizada-durante-a-pandemia Acesso em 18 jan. 2022.
[2] AVELAR, Daniella. O direito ao ressarcimento de valores pagos em eventos e shows no cenário do Covid-19- Relativização dos princípios consumeristas. Disponível em: https://daniellamoreiraavelar.jusbrasil.com.br/artigos/1255956832/o-direito-ao-ressarcimento-de-valores-pagos-em-eventos-e-shows-no-cenario-do-covid-19-relativizacao-dos-principios-consumeristas Acesso em 22 jan. 2022
[3] (TJ-DF 07143598120208070020 DF 0714359-81.2020.8.07.0020, Relator: ANA CLAUDIA LOIOLA DE MORAIS MENDES, Data de Julgamento: 10/08/2021, Segunda Turma Recursal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 16/08/2021 . Pág.: Sem Página Cadastrada.)